domingo, 28 de agosto de 2011

"SUJIDADE POLÍTICA"


Os preconceitos, caro leitor, são os reis do vulgo. E é com essa paráfrase oblíqua de Voltaire que desejo começar essa nossa conversa. Não é uma novidade o fato de um parlamentar brasileiro usar tribuna não como parlatório e sim como a privada da sua casa ou a selva inóspita de sua própria existência. Nos últimos anos fomos entubados com as diatribes do deputado federal Jair Bolsonaro (PP-RJ) e todos os preconceitos que sua ignorância social são capazes de criar e fermentar. Mas fiquei realmente estupefato com as recentes declarações escalafobéticas da ex-atriz, ex-mulher do cantor Roberto Carlos e agora deputada estadual Myrian Rios (PDT-RJ).


Graças ao nosso esquizofrênico e anacrônico sistema eleitoral, Myrian Rios, agora católica fervorosa da dogmática Renovação Carismática e que é mineira de nascimento, foi eleita para a Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (ALERJ) na esteira verborrágica do meio milhão de votos que teve seu correligionário, o apresentador Wagner Montes (PDT-RJ). Imaginava-se que uma mulher que viveu décadas nos corredores artísticos da maior emissora de TV do país, que foi casada com um dos maiores cantores da música brasileira e que já foi capa duas vezes daquelas revistas que revelam quase o útero das mulheres nuas fotografadas, teria um mínimo de esclarecimento social e político para fazer uso de suas atribuições enquanto parlamentar. Ledo engano.


Da tribuna da ALERJ, a deputada Myrian Rios vomitou uma série de barbaridades, chegando a insinuar que os homossexuais teriam tendências naturais à pedofilia. Fez isso para justificar seu voto contrário à Proposta de Emenda Constitucional (PEC) nº 23, que acrescenta a orientação sexual às formas de discriminação puníveis pelo Estado. Vejam só o absurdo! Um parlamentar tem todo direito de votar contra ou a favor de qualquer projeto ou proposta de acordo com suas convicções e com o que julga ser melhor ou pior para seu povo e seu território. Mas é inadmissível que uma deputada faça uso de mentiras – ou de sua própria ignorância ou fundamentalismo – para chancelar suas decisões aos anais do Parlamento. Isso sem falar que o Estado, por origem e constituição, é laico. E essa foi apenas uma das muitas declarações bizarras, preconceituosas e, quiçá, criminosas da deputada celebridade.


Então, de duas, uma: ou a recém-deputada goza de profunda ignorância; ou só queria gerar polêmica e, literalmente, aparecer, para não mais precisar de votos de legenda numa candidatura futura. De toda forma, seu discurso foi absurdo e digno de repúdio. Myrian Rios já voltou à tribuna da ALERJ e tentou um pedido de desculpas e uma espécie de mea culpa torto, afirmando que tem familiares homossexuais e que “não deixa de amá-los como seres humanos e filhos de Deus”. Mas só o fez depois que percebeu a avalanche de críticas que recebeu, desde cidadãos comuns nas ruas, até personalidades, como o autor de novelas Walcyr Carrasco, que chamou a deputada de “burra” em seu twitter.


Seja como for, num país onde homossexuais são diariamente agredidos e assassinados às dezenas, figuras públicas como Jair Bolsonaro e Myrian Rios não passam de pseudoautoridades desprezíveis, travestidas pelo manto sagrado de Deus e outros deuses e da imunidade parlamentar, que fazem uso de sua situação privilegiada para, em última instância, legitimar os mentecaptos capazes de atacar e matar um homem apenas pelo fato dele amar outro homem, ou assassinar uma mulher por ela amar outra. São intolerantes. São ignorantes. São mentirosos. São, em suma e como desabafou o novelista, burros. Enganadores de si e dos que os seguem, serão certamente atropelados e varridos pela sociedade moderna.


É como bem disse o saudoso escritor e dramaturgo austríaco Thomas Bernhard, um dos mais importantes germanófonos da segunda metade do século XX, em seu livro “O Náufrago” (Companhia das Letras, 1996, R$ 43,50, tradução de Sérgio Tellaroli), uma das narrativas mais impressionantes da literatura contemporânea: “Nós, na teoria, compreendemos as pessoas, mas, na prática, não as suportamos. Na maior parte das vezes, só a contragosto lidamos com elas e tratamo-las de acordo com nosso próprio ponto de vista. Não deveríamos, no entanto, tratá-las e considerá-las apenas segundo nosso ponto de vista, mas sim, segundo todos os pontos de vista.” Infelizmente, muitas de nossas autoridades públicas sequer tem um ponto de vista. São bichos cegos. Sujidades políticas da pior espécie, que jamais irão conseguir compreender a nova sociedade que se agiganta no horizonte do mundo.


HELDER CALDEIRA

Nenhum comentário: